quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

maré

 vulcão é um troço muito louco. 
 eu tenho mil erupções dentro do peito, e nunca pensei em dar esse nome à isso. 
 o fogo que me sai de vez em quando é sempre acionado pelas borboletas no estômago. 
 e nesse processo contínuo, a larva, quando endurece e petrifica por um tempo, 
tem a ver com o sal de fruta fervendo num copo d'água do Tom Zé. 
 porque por mais rocha que o peito esteja, 
ele esquenta de novo e tudo começar a amolecer mais uma vez, 
tal e qual um Eno guaraná. 
mas isso não faz do meu corpo, que é ninho, um líquido, um gelo mole. 
 o ninho de nós - de linha mesmo - que existe dentro do corpo, 
é o que nos borda os retalhos das reminiscências. 
não cai bem criar um lugar pras lamúrias. 
 por isso até os nós - de linhas, de novo - precisam do nexo das pedras. 
e não há calúnia alguma em dizer que endurecemos. 
precisamos ser vulcânicos mesmo, pra ressucitar eventualmente, 
de tempos em tempos. 
esquentar e esfriar, morrer e nascer, acordar e dormir, como a gente faz. 
a gente dorme pra paixão às vezes mesmo, que nem o Ojos del Salado dormindo lá nos Andes. 

 sobre a maré, 
 não tenho nenhuma filosofia barata não, 
não tenho nenhuma construção paradoxal e comparativa pra fazer não. 
só me gusta pensar em maré mesmo, sem pretenção. 
e a maré é ela mesma, sem delírios, sem música, sem filtro. 
maré é nome próprio de si mesmo, dando voltas na terra, vagando na minha cama.


"o meu coração é de pedra
dura. cinzenta, vulcânica.
o meu coração é de pedra.
pedra. simples pedra, cinzenta,
dura vulcânica, atlântica.

não sei o que fazer com a pedra.
com o coração, com o vulcão, com o atlântico.
pergunto-me até onde ir. haverá razão
para além do coração, cinzento, vulcânico, 
para o retransformar em espuma, líquida, 
branca, no meu coração de pedra, atlântica,
vulcânica?

a simples condição, sanguínea, branca,
semântica. como a palavra. o verso, o sentir vulcânico
atlântico."


 José António Gonçalves - A pedra, Coração Vulcânico

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